9 de abr. de 2010

José Saramago

Não Sabia Que Era Precisa.


Ao contrário do que afirmam os ingênuos (todos os somos uma vez por outra), não basta dizer a verdade. De pouco ela servirá ao trato das pessoas se não for crível, e talvez até devesse ser essa sua primeira qualidade. A verdade é apenas meio caminho, a outra metade chama-se credibilidade. Por isso há mentiras que passam por verdades, e verdades que são tidas por mentiras.
Esta introdução, pelo seu tom de sermão da quaresma, prometeria uma grave e aguda definição de verdades relativamente absolutas e de mentiras absolutamente relativas. Não é tal. É apenas um modo de me sangrar em saúde, de esquivar acusações, pois, desde já o anúncio, a verdade que hoje trago não é crível. Ora vejamos se isto é história de se acreditar.
O caso passa num sanatório. Abro um parênteses: o escritor português que escolhesse para tema de um romance a vida de sanatório, talvez não viesse a escrever A Montanha Mágica ou O Pavilhão dos Cancerosos, mas deixaria um documento que nos afastaria da interminável ruminação de dois ou três assuntos erótico-sentimentalo-burgueses. Adiante, porém, que esta crônica não é lugar de torneios ou justas literárias. Aqui só fala de simplesas quotidianas, pequenos acontecimentos, leves fantasias - e hoje, para variar, de verdades que parecem mentiras. (Verdades por exemplo, é do doente que entrava para o chuveiro, punha a água a correr, e não se lavava. Durante meses e meses não se lavou. E outras verdades igualmente sujas, rasteiras, monótonas e degradantes).
Mas vamos a história, Lá no sanatório, dizia-me aquele amigo, havia um doente, homem de uns cinquenta anos, que tinha grande dificuldade de andar. A doença pulmonar de que padecia nada tinha que ver com o sofrimento que lhe arrepanhava a cara toda, nem com os suspiros de dor, nem com os trejeitos do corpo.Um dia, até apareceu andando com duas bengalas toscas, a que se amparava, como um inválido. Mas sempre em ais, em gemidos, a queixar-se dos pés, que aquilo era um martírio, que já não podia aguentar.
O meu amigo deu-lhe o óbvio conselho: mostrasse os pés ao médico, talvez fosse reumatismo. O outro abanava a cabeça, quase a chorar, cheio de dó de si mesmo, como se pedisse colo. Então o meu amigo, que lá tinha as suas caladas amarguras e com elas vivia, impactou-se e foi áspero. A atitude deu resultado. Daí a dois dias, o doente dos pés chamou-o e anunciou-lhe que ia mostrá-los ao médico. Mas que antes disso gostaria que o seu bom conselheiro os visse.
E mostrou. As unhas, amarelas, encurvavam-se para baixo, contornavam a cabeça dos dedos e prolongavam-se para dentro, como biqueiras ou dedais córneos. O espetáculo metia nojo, revolvia o estômago. E quando perguntaram a este homem adulto por que não cortava as unhas, que o mal era só esse, respondeu: "Não sabia que era preciso".
As unhas foram cortadas. Cortadas a alicate. Entre elas e cascos de animais a diferença não era grande. No fim de contas (pois não é verdade?), é preciso muito trabalho para manter as diferenças todas, para alargá-las aos poucos, a ver se a gente atinge enfim a humanidade.
Mas de repente acontece uma coisa destas, e ve-mos diante de um nosso semelhante que não sabe que é preciso defendermo-nos todos os dias da degradação. E neste momento não é de unhas que estou a pensar.

José Saramago.